segunda-feira, 31 de março de 2008

...que se cumpre aos poucos

Desprende-se de mim esse gesto que se cumpre aos poucos. Feito tarde que se despede da luz, assim, num processo de anoitecer, morrendo tarde, nascendo noite, mudando de roupa, cobrindo-se de crepúsculos e estrelas.Desprende-se de mim esse gesto que se cumpre aos poucos. Forma serena de morrer vivendo, confundindo os verbos e os tempos, assim feito poema que se sacramenta na pele antes de se tornar palavra, alquimia que só os sofridos podem realizar.Desprende-se de mim esse gesto que se cumpre aos poucos. Amor amado que no calado coração adormeceu, virou ventura de ser silêncio em meio ao pó, feito criado que, ao lado da cama, espera chegar o dia em que deixará de ser mudo.Desprende-se de mim esse gesto que se cumpre aos poucos. Adornado encalço que, em meio a flores, denuncia o crime, passagem noturna de um poeta errante, embriagado de palavras tontas, turvas rotas do sentimento humano.Desprende-se de mim esse gesto que se cumpre aos poucos. Esse existir sentido, cotidiano, sem feriados, acomodando-se em calendários, em que a história resolveu ser números, antes de ser passado.Desprende-se de mim esse gesto que se cumpre aos poucos. Esse poema de adeus que a Deus pertence, essa reunião de palavras que ao céu reclama, essa agonia literária que se descreve o gozo do poeta de ser gesto e palavra ao mesmo tempo.Desprende-se de mim esse gesto que se cumpre aos poucos. Esse gesto que realizo aos poucos, de chegar ao fim de meu poema.

Do Livro: MELO, Fábio de. Tempo: saudades e esquecimento - o cotidiano como lugar de revelação.
São Paulo: Paulinas, 2003. p.126

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